Latinoamérica
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Entrevista a Vera Malaguti Batista *
O medo à serviço do neoliberalismo
Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Nº 262, Maio de 2006
Para socióloga, sentimento é usado pelas elites para deixar a sociedade
brasileira paralisada e despolitizada.
Ao longo da história da humanidade o medo sempre foi usado para dominar e
controlar a sociedade. No Brasil, em específico, a utilização deste sentimento,
difundido pelos grandes meios de comunicação, criminaliza as ações populares e
os movimentos sociais. Esta é a idéia defendida pela socióloga Vera Malaguti
Batista, que realizou uma pesquisa histórica, que mostra como o medo, desde a
época da colonização é usado para manter as hierarquias, deixando a sociedade
mais conservadora. "Sempre os movimentos do povo brasileiro são tratados como
crime, baderna, bagunça, caos. Acredito que esta é uma recorrência histórica
para manter uma ordem que é muito parecida com a escravocrata imperial", afirma.
De acordo com Vera, nesta estratégia promovida desde sempre pela elite
brasileira, os meios de comunicação de massa são uma ferramenta eficaz. "No
Brasil, uma das coisas mais assustadoras é o domínio da alma e das mentes do
povo brasileiro pelo monopólio da televisão. A existência de um discurso único
faz com que o MST apareça sempre como uma ameaça e não como uma grande luta do
povo brasileiro por sua soberania".
Em entrevista ao Jornal Sem Terra, a socióloga defende que, para barrar esta
situação, os movimentos sociais brasileiros devem se unir na luta contra o
monopólio dos meios de comunicação. "Hoje em dia, defendo que esta é uma luta
que deveria ser considerada prioridade".
Jornal Sem Terra – Como o neoliberalismo usa o medo para manter sua dominação
e exploração?
Vera Malaguti – Realizei um estudo da história do Brasil e principalmente do Rio
de Janeiro, sobre os medos que apareciam no século 19. Minha primeira observação
foi que a elite, quando quer descartar a massa trabalhadora brasileira,
desenvolve, principalmente através da imprensa, uma estratégia para demonizar as
ações populares.
Historicamente, há uma maneira de olhar o povo brasileiro como uma ameaça,
principalmente a juventude popular. Na minha pesquisa de mestrado, trabalhei
drogas e juventude na capital carioca e descobri que, se um menino negro e
morador da favela for pego com a mesma quantidade de droga que um menino branco,
morador da zona sul, os discursos construídos pelo sistema serão completamente
diferentes.
Um será dependente, o outro traficante. Porque este outro representa o povo a
quem sempre é lançado um olhar de desconfiança.
No século 19, a cidade do Rio de Janeiro contava com a maior concentração de
africanos das Américas.
A cidade branca e proprietária usava o tempo todo o discurso do medo. No entanto,
quem vivia sobre condições horríveis de vida era a população africana, que era
açoitada, mal tratada e submetida às piores condições de trabalho. Por isso, ali
existia uma situação social explosiva.
Ao invés de se trabalhar os conflitos pela via social, o discurso do medo faz
com que o Estado deixe de atender a população para construir um sistema penal.
Desde que o neoliberalismo se instalou no Brasil, com maior intensidade a partir
de 1994, nós tivemos a população penitenciária quintuplicada. O Ministério da
Justiça trabalha com a perspectiva de que, em 2007, o Brasil tenha 500 mil
presos. Em 94 este número ficava em torno de 100 mil. O que assistimos hoje é um
movimento de criação de precariedade social, desemprego, destruição dos laços
coletivos, despolitização e a criminalização da pobreza.
O MST é um exemplo disso. O Movimento tem uma luta legítima que vem desde sempre
na história do Brasil. É o que o professor e filósofo Marildo Menegatti chama de
revoluções adiadas.
JST – Quais as conseqüências que isso tem para a sociedade brasileira?
VM - Na década de 60, durante o governo de João Goulart, quando se discutia as
reformas de base, o medo da revolução, da violência foi se destilando pela
imprensa, quando na verdade aquele era o momento em que a mobilização do povo
brasileiro tentava avançar. Hoje existe, não só a criminalização do MST, mas do
trabalho precário (flanelinhas e camelôs), dos meninos e meninas que vivem na
rua. Um país decente olharia para estas crianças que estão jogadas nas calçadas
com um olhar solidário, que reconheceria neles, seus filhos. No entanto, o medo
faz com que a sociedade erga mais prisões, mais grades, mais muros,
intensificando o distanciamento entre a pobreza e uma pequena elite que acumula
cada vez mais riquezas. O mais curioso e absurdo disso tudo é que é esta
burguesia a mais protegida, a que mais tem seu medo mais divulgado. Enquanto
quem vive a barbárie, é a população pobre do campo e da cidade.
Por tudo isso o medo é um instrumento fundamental para se manter a hierarquia da
sociedade. No século 19, não existia nada mais legítimo do que a rebelião
escrava, dada a condição que estas pessoas viviam. No entanto, a imprensa
naquela época se referia aos quilombos da mesma forma com que hoje os meios de
comunicação mostram a favela, o baile funk, o comércio de drogas, os camelôs. Os
grandes nós que existem na sociedade brasileira, como o acesso à terra e à
educação, tem sua origem na maneira com que o Brasil se construiu: excluindo seu
povo das riquezas.
O medo é uma ferramenta fundamental para manter este mecanismo porque ele é
paralisante e torna a sociedade conservadora. Uma população que teme a favela
vai querer que se extermine seus moradores. Por isso, a morte diária dos jovens
de lá é vista como algo natural. Da mesma forma com que no século 19, os
capoeiras eram exterminados porque representavam uma ameaça à sociedade
escravocrata. Quando olhamos para a realidade atual, percebemos que as questões
do século 19 permanecem. Sempre os movimentos do povo brasileiro são tratados
como crime, baderna, bagunça, caos. Acredito que isso é uma recorrência
histórica para manter esta ordem que é muito parecida com a escravocrata
imperial.
O medo deixa a sociedade engessada e conservadora. Ele não é um sentimento
libertador, pelo contrário, faz com que as pessoas se fechem, desconfiem uma das
outras. Ao longo da história da humanidade, este sentimento foi de grande uso. O
nazismo, a Inquisição da Igreja, os Estados Unidos com a perseguição ao Islã,
são exemplos claros. A eleição de um inimigo cria a propagação do medo, que
produz resultados concretos, como a criminalização das lutas sociais, a criação
de bodes expiatórios, a obsessão pela segurança pública. Se nós discutíssemos
estas questões sem a propagação do medo promovida pelos meios de comunicação,
estaríamos falando sobre Reforma Agrária, educação pública, programas sociais,
saúde, trabalho. Entretanto, quanto mais inseguros ficamos no neoliberalismo com
relação à garantias trabalhistas, acesso à saúde; quanto mais desamparados nos
sentimos nesta ordem econômica, mais conservadores nos tornamos.
JST – E qual o papel dos meios de comunicação nesta estratégia?
VM – Os meios de comunicação são os protagonistas desta história. Sem eles, não
seria possível difundir o medo. Os movimentos sociais e populares são vistos
como uma ameaça à ordem, o que faz com que a sociedade conceda uma resposta
penal e não política, econômica e social à estes casos. Este mecanismo é muito
eficaz para manter as coisas como estão por muitos anos na nossa sociedade. No
Brasil, uma das coisas mais assustadoras é o domínio da alma e das mentes do
povo brasileiro pelo monopólio da televisão. A existência de um discurso único
televisivo faz com que o MST apareça sempre como assustador e violento e não
como uma grande e bonita luta do povo brasileiro por sua soberania. A gente tem
o monopólio dos meios de comunicação e um discurso único que trabalha o medo o
tempo todo. É um mecanismo sutil e subjetivo, mas que tem um poder
extraordinário.
Um exemplo é o que está acontecendo na Bolívia com a nacionalização do gás. Os
bolivianos estão exercendo seu direito soberano de se apropriar das suas
riquezas naturais. No entanto, os meios de comunicação provocam uma falsa crise,
constróem uma outra realidade para nos afastar das conquistas do povo boliviano
e também do venezuelano, o que provoca a desagregação deste momento histórico
que vivemos na América Latina. O medo do Chávez, do Fidel representa os grandes
fantasmas da América Latina porque simboliza o povo.
JST – Este receio aparece, de certa forma, na inscrição ordem e progresso que
está no símbolo máximo do país, que é a bandeira nacional.
VM – Sim, e neste tipo de ordem a hierarquia social não pode ser questionada.
Cada um tem que ficar no seu lugar. No século 19, nós tivemos aqui várias
rebeliões populares em todo o país, do Oiapoque ao Chuí. Desde a Farroupilha, no
sul, a Cabanagem no Pará, a dos Malês na Bahia, a Praieria em Pernambuco. Este
foi um período de grande medo de que o povo chegasse ao poder, o que comprova
que esta é uma situação que vem desde sempre. Os colonizadores entraram no
território latino-americano, como se os índios representassem uma ameaça, quando
na verdade foram espanhóis e portugueses que promoveram um genocídio em todo o
continente. Hoje percebemos isso quando os Estados Unidos tratam a resistência
no Iraque como terrorismo, quando quem está sendo barbarizado são os iraquianos.
No Brasil, a sociedade é levada a enxergar o MST, um Movimento com que ela
naturalmente se simpatizaria, de uma forma negativa. Todo este esforço é para
manter distância entre organizações populares e sociedade, porque o medo
distancia.
JST – Como é possível enfrentar esta conjuntura?
VM – Temos que manter as lutas setoriais que temos: por terra, educação, saúde,
na cidade e no campo. Mas temos todos, de uma forma muito intensa, que lutar
contra o monopólio dos meios de comunicação. Quando um governo que se diz
progressista, se submete à estes veículos, acabamos andando para trás, ou seja,
ficamos na mão deste poder midiático imenso de criação de uma realidade política
determinada. Hoje em dia eu defendo que esta é uma luta que deveria ser
considerada prioridade. É onde todos os movimentos sociais brasileiros deveriam
se unir, porque hoje nós não temos voz. Mesmo um Movimento como o MST que tem
uma grande e profunda organização, acaba não tendo espaço ou sendo manipulado,
aparecendo como um perigo para o Brasil.
* Vera Malaguti Batista é socióloga, Mestre em História, Doutora em Saúde
Coletiva e Secretária Geral do Instituto Carioca de Criminologia. Publicou os
livros: "Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro" e
"O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história".