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Haiti 
A exploração prosseguiu sob forma semicolonial... 
Uma intervenção sem fim
Mário Maestri * 
Correio da Cidadania 
http://www.correiocidadania.com.br 
Em 29 de fevereiro de 2004, o presidente Jean-Bertrand Aristide, 52, foi expulso 
do Haiti por tropas franco-estadunidenses. A intervenção foi repudiada pela 
associação dos países do Caribe. A seguir, para legalizar e socializar os custos 
da ocupação, ela foi entregue à força expedicionária da ONU, o que feria sua 
carta, pois organizada contra a vontade do governo haitiano. Bush propôs e Lula 
da Silva aceitou que o Brasil comandasse as forças da ONU e enviasse 1.400 
soldados. A substituição das tropas dos EUA era urgente devido à resistência no 
Iraque e Afeganistão. A formação da força expedicionária internacional – oito 
mil soldados – abatia os gastos dos EUA na intervenção. Os custos brasileiros 
são financiados, sobretudo, pelos cofres da nação. 
O governo Lula da Silva sequer escondeu os objetivos mesquinhos. Esperavam como 
pagamento do serviço o apoio yankee à reivindicação a vaga permanente no 
Conselho da Segurança da ONU. Apesar de sua dimensão, o Brasil conhece status 
semicolonial, submetido política, econômica etc. às exigências do capital 
mundial. O improvável ingresso do Brasil como membro permanente do Conselho de 
Segurança dar-se-ia sem direito a veto, ensejando que as forças armadas 
brasileiras ajam como guardas pretorianas quando de eventuais intervenções, 
sobretudo na América Latina – Bolívia, Colômbia, Venezuela etc. 
A intervenção prestigiaria o exército, desmoralizado devido à ditadura. A 
utilização de tropas treinadas no Haiti na recente ocupação militar das favelas 
cariocas comprova que a intervenção serve também para treinar soldados e 
habituar a população à idéia da ação militar nos bairros populares brasileiros, 
com população, sobretudo, negra. A expedição permitiria operações de prestígio, 
como o amistoso de agosto de 2004, entre as seleções brasileira e haitiana, 
quando os canarinhos desfilaram em blindados Urutus, Lula da Silva pousou como 
um mini-Bush e os soldadinhos brasileiros, como quase mariners. A ocupação foi 
também justificada como contribuição à ordem e ao progresso de nação miserável 
por parte do grande irmão brasileiro! 
Vermelho e negro
Mais de dois anos e meio após a intervenção, a única diferença que o haitiano 
conhece é a humilhação do coturno estrangeiro. O país segue miserável. A 
liberalização e a valorização da moeda exigidas pelo grande capital destruíram o 
pouco de indústria e vergaram a agricultura. A taxa de desemprego é de 80%. A 
população rural vive de miserável agricultura. Para produzir carvão, fonte de 
energia e renda popular, o país foi desmatado e os solos degradaram-se. Vivendo 
em boa parte da ajuda exterior e das remessas dos expatriados, o Haiti paga 
disciplinadamente a dívida mundial.
A ocupação deu-se, em 2004, no segundo centenário da mais gloriosa saga 
americana, quando trabalhadores escravizados derrotaram os exércitos franceses, 
ingleses e espanhóis, criando a primeira nação americana livre da escravidão. 
Para que o exemplo não incendiasse as Américas, os escravistas europeus e 
estadunidenses mantiveram o Haiti sob bloqueio e controle durante o século 19. 
No século 20, o Haiti, Cuba e o Panamá sofreram precocemente o tacão do 
neo-imperialismo dos EUA que, de 1915 a 1934, rapinou a ilha. A exploração 
prosseguiu sob forma semicolonial, com destaque para as ditaduras de Papa Doc e 
Baby Doc. Em 1986, devido à luta popular, Baby Doc, protegido por mariners, foi 
viver feliz no sul da França.
O sacerdote Jean-Bertrand Aristide, ligado à teologia da libertação, ingressou 
na política nos últimos tempos de Baby Doc. Em 1990, elegeu-se presidente, com 
programa reformista, com o apoio maciço da população negra miserável. Porém, em 
30 de setembro de 1991, em plena contra-revolução liberal mundial, Papa Bush, na 
presidência, substituiu Aristide por militares. Então, milhares de haitianos 
fugiram do país, em parte para os EUA, em cujas fronteiras foram comumente 
presos. Aristide refugiou-se nos EUA, sob as asas de afro-estadunidenses 
democratas. Sob os novos ventos, como tantos outros políticos, voltou as costas 
à população, acertando a bússola com os estadunidenses, sobretudo na versão 
democrata.
Bush faz, Clinton desfaz
Em maio de 1994, sob o governo Clinton, a ONU impôs bloqueio, aprofundando a 
miséria popular e, em setembro, Aristide voltou à presidência, apoiado por 20 
mil mariners. Aristide recebeu a promessa de ajuda econômica, que mitigaria as 
medidas neoliberais que implantaria. Prometeu também limitar o incômodo fluxo 
haitiano aos EUA. Semanas após o retorno, os republicanos dominaram o Congresso, 
bloqueando a ajuda ao Haiti. Em 1996, Aristide entregou a presidência a René 
Préval, de seu partido, retornando ao poder em 2000. As medidas conservadoras 
ensejaram que perdesse apoio popular, sustentando-se no movimento Família 
Avalanche [Fanmi Lavalas], crescentemente armado. Em 2003, parte do frágil 
movimento social mobilizou-se contra ele e pelo saneamento do país. Militares do 
exército dissolvido, apoiados pela CIA, invadiram o Haiti para impor governo 
autoritário. Era Baby Bush repetindo Papa Bush.
Quando deposto, Aristide perdia prestígio, o que garantiu paz transitória às 
forças invasoras. Bush II entregou a gestão da ocupação à ONU e o poder a 
marionetes haitianas. A principal iniciativa dos ocupantes foi reorganizar a 
Polícia Nacional Haitiana, que passou a reprimir e a eliminar os seguidores de 
Aristide, fortes nos bairros miseráveis de Cité Soleil [Cidade Sol] e Bel-Air [Ar 
Bonito], com a cumplicidade e apoio das tropas da ONU, comandadas por general 
brasileiro. 
  
Mobilização popular e repressão 
Em maio de 2004, manifestante foi morto durante mobilização pacífica. Em agosto, 
dois populares foram abatidos próximos da Cité Soleil. Em setembro, dez 
manifestantes foram executados. Em outubro, três parlamentares do Fanmi Lavalas 
eram presos. A seguir, nos bairros populares, levantaram-se barricadas e os 
policiais e militares foram recebidas a tiros. Ainda em outubro, policial 
haitiano foi selvagemente espancado por soldados brasileiros, ignorantes do 
crioulo. Em 6 de julho de 2005, 300 soldados, sobretudo brasileiros, mataram 
mais de 60 habitantes na Cité Soleil e Bois Neuf. Denunciado, o governo 
brasileiro apresentou a ação como repressão a "criminais armados" e procurou 
envolver intelectuais, acadêmicos, ONGs na defesa da ocupação.
A intervenção seria coroada com governo de fachada, nascido de eleições 
controladas. Para tal, proibiu-se o retorno de Aristide; seus seguidores foram 
reprimidos; permitiu-se que apenas 30% da população votassem; organizou-se 
proliferação de candidatos à presidência; apoiaram-se nomes simpáticos à 
intervenção. O favoritismo de René Préval, 63, ex-militante Lavalas, candidato 
da Plataforma Esperança, registrou o rechaço à ocupação, pondo fim às veleidades 
republicanas. Para garantir frente anti-Préval em um segundo turno ou, ao menos, 
enfraquecer sua vitória, o Conselho Eleitoral Provisório, da ONU, empreendeu 
sucessivas postergações do pleito e, a seguir, fraude generalizada, na votação 
de 7 de fevereiro de 2006. 
Em 7 de janeiro, o suicídio do general riograndense Urano Bacellar, 57, 
comandante das tropas da ONU, após um novo reenvio das eleições, registrou o 
impasse e o dilaceramento de intervenção que se concluiria com a despudorada 
manipulação eleitoral materializada um mês mais tarde. A mobilização contra a 
fraude levou a que o governo do Brasil propusesse o reconhecimento da vitória de 
Préval, com posse prevista para 7 de maio até o fechamento dessa edição, temendo 
insurreição popular. Após prometer emprego, educação, menos pobreza, governará 
país devastado, atado aos compromissos assumidos com o grande capital, que exige 
radicalização das exportações e liberalização econômica.
Durante tournée latino-americana, Préval pediu que as tropas de ocupação 
permaneçam no país enquanto não se organize polícia honesta. A declaração 
registra o medo, por um lado, de golpismo de inspiração republicana, caso o 
poder civil se confronte, sem anteparo, com as forças policial-militares, e, por 
outro, o temor da agitação popular de população traída nas suas expectativas. O 
Haiti baila ao ritmo de sinistro bolero ao estilo de Ravel que parece querer 
jamais chegar ao fim. 
* Historiador, militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).