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Latinoamérica


 

Carta o berro


"Debaixo da lona preta,
na terra crua e batida,
nos espaços áridos da vida,
surgem àquelas mãos,
sujas do desemprego,
renegados do latifúndio maldito,
constroem da semente bendita,
a nova planta da vida e
a nova nação."
vanderleycaixe

Aos Semeadores de Sonhos

Há aproximadamente um ano e seis meses, 300 famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra, montavam acampamento em frente o maior latifúndio de Ribeirão Preto. Este fato trouxe para a capital do agronegócio o espanto de quem acreditava piamente que em nossa região não existia latifúndio improdutivo, aliás nem latifúndio, afinal este termo desagrada os promissores empresários rurais de nossa terra.
Pois bem o tempo foi passando e hoje temos em nossa cidade um latifúndio improdutivo desapropriado para fins sociais de reforma agrária, e melhor ainda, ocupado por trabalhadores que já demonstram na prática a que vieram.
Lembro-me que há alguns meses, um conceituado economista de nossa cidade afirmou que não tinha ouvido falar de alguém que tivesse comido sequer um pé de alface produzido pelos sem terra. Naquele momento a vontade que dava era de rebater esta infeliz colocação, mas nada melhor que um dia atrás do outro para que a história se encarregue de resolver certos surtos "economiquês".
Hoje a Fazenda da Barra (que logo, logo vai se chamar Assentamento Mário Lago) está sendo cultivada pelos camponeses vítimas deste modelo de agricultura adotado na região. Dividimos provisoriamente um pedaço de terra para cada família e lá, ela vai ensaiando o que será o nosso assentamento. Com muita alegria falamos que hoje os sem terra são os maiores produtores de milho verde do município, assim como de feijão, mandioca. Nossa primeira safra está estimada em torno de: 30 toneladas de milho, 15 toneladas de feijão e 20 toneladas de mandioca. E com um detalhe, estamos plantando em cima do Aquífero Guarani, sem agrotóxicos e nem fertilizantes químicos (prática corriqueira dos "empresários rurais" ).
A felicidade estampada no rosto de cada trabalhadora e de cada trabalhador é nítida; romper a cerca do latifúndio significa bem mais do que a terra, tem a ver com a auto estima das pessoas. Esta auto estima de poder plantar, colher e comer; sentimento que é privilégio de poucos em nosso país, afinal de contas esta sociedade é para poucos.
Neste período não precisamos em nenhum momento da presença da polícia militar para resolver problemas em nossa comunidade. Quando vieram, foi a pedido dos fazendeiros para tentar cumprir reintegração de posse. Está aí uma prova que a violência tem muito a ver com a falta de sentimento de comunidade (sentir-se parte) e com a possibilidade de ter o que fazer, trabalhar (sentir-se gente).
Não precisamos ter a visita do Conselho Tutelar, pois todas as crianças estão na escola, às vezes sofrendo discriminações. Até mesmo no momento em que a prefeitura se negou a entrar na fazenda para pegar as crianças argumentando que estariam cometendo um grave crime de entrar numa propriedade particular e obrigavam as crianças a percorrer até oito quilômetros a pé debaixo de chuva, lá estavam elas, no banco da escola com o chinelinho sujo mas com a cabeça erguida. Como me disse um menino: "prefiro tá com o pé sujo de barro do que de esgoto."
Aproximadamente 250 crianças vivem no acampamento; estamos começando a construir a proposta da "ciranda infantil", que no nosso movimento é um trabalho planejado desenvolvido com as crianças; queremos fazer nossa ciranda infantil girar e gerar conhecimento, criatividade, alimentação de qualidade e vida saudável. Este trabalho será desenvolvido todos os dias, por nossos educadores populares forjados nesta luta. Queremos contar com a contribuição de outros educadores e educadoras da nossa sociedade. Como complemento escolar, faremos oficinas de artes, parques infantis, práticas esportivas e brincadeiras à vontade, de modo que possamos garantir o futuro de nosso assentamento e desses novos seres humanos criados em terra liberta. Queremos poder contar com o apoio da sociedade para nos ajudar a efetivar esta proposta, bem como reforçar nosso convite para que visitem e se envolvam com nosso Acampamento Mário Lago.
Nestes próximos dias estaremos realizando seminários, cursos de formação em agroecologia para que todas as pessoas do acampamento participem. Queremos construir este assentamento junto com a sociedade de Ribeirão Preto; temos a convicção de que esta terra conquistada irá contribuir muito para o desenvolvimento de nossa cidade, para a obtenção de alimentos seguros e para a preservação do Aquífero Guarani.
Nos dias 10 e 11 deste mês, realizaremos um grande seminário, com o tema: "Desafios e Resistência no Campo Brasileiro", que contará com a presença de técnicos da EMBRAPA, IBAMA, entidades ecológicas como a Pau Brasil ( que se destaca pela luta incansável contra as queimadas e a preservação do Aquífero), Ministério Público do Meio Ambiente, INCRA, pesquisadores da USP de São Paulo e da UFSCAR. Nosso intuito é de debater os novos desafios dos assentamentos de Reforma Agrária no Brasil e a implementação destes, próximos aos grandes centros urbanos, como é o caso de Ribeirão Preto.
Cada vez mais se torna imprescindível discutir e estudar o campo e a posse da terra, que afinal de contas é o nosso principal bem natural e ainda hoje é apropriado por poucos, mal aproveitado e mal tratado pelo latifúndio.
Com relação ao nosso amigo economista, aquele do pé de alface, gostaria de propor uma questão que talvez seja mais séria: como explicar que em plena capital do agronegócio, num momento de crescimento significativo das exportações e das taxas de lucro dos empresários rurais, pode-se explicar o déficit financeiro e o endividamento de nosso município? Para onde vai toda a riqueza produzida em nossa região? Em tempos de domínio total das grandes corporações no campo, o tal agronegócio, precisamos nos perguntar o que queremos em benefício de nosso povo e de nosso país. Superávit não se põe na mesa e a dita "terra produtiva" nem sempre cumpre sua função social.
Ribeirão Preto, fevereiro de 2005
Edivar Lavratti
Militante do MST