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        Latinoamérica 
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Política Exterior do Brasil – De FHC a Lula.
Luiz Alberto Moniz Bandeira* .
Após um período de crescentes dificuldades entre o Brasil e os Estados Unidos, 
no curso nas décadas de 1970 e 1980, Fernando Collor de Melo (1990-1992), o 
primeiro presidente da República eleito pelo voto direto desde 1960, prometeu 
que sua visita a Washington, em 1991, marcaria o fim de uma "fase amadorística 
(sic) e romântica" nas relações dois países. Empenhou-se em esvaziar o 
contencioso, que havia, e iniciou a desregulamentação e liberalização do 
economia, fazendo diversas concessões aos Estados Unidos, cedendo e concedendo, 
sem exigir reciprocidade. Seu sucessor, Itamar Franco (1992-1995), com viés 
nacionalista, moderou o discurso e a prática liberalizante do governo de Collor 
de Mello, ao mesmo tempo em que tratou de conter a inflação e estabilizar a 
moeda, mediante a execução do Plano Real. Fernando Henrique Cardoso, seu 
sucessor, assumiu a presidência da República em 1995, com a pretensão de 
revitalizar a agenda Brasil-Estados Unidos, "sem as incompreensões do passado". 
Reconheceu as divergências que existiam como "próprias dos relacionamentos 
caracterizados pela amplitude de interesses recíprocos" e, através do diálogo, 
procurou sobrepor ao contencioso bilateral cotidiano uma agenda mais abrangente, 
incluindo a "crescente democratização das relações internacionais". Ao longo de 
seus dois mandatos (1995-1999 e 1999-2003), procurou ajustar os objetivos do 
Brasil aos interesses dos Estados Unidos, ou seja, à nova ordem internacional 
unipolar, de modo a facilitar-lhe a inserção, harmoniosamente, no processo de 
globalização econômica e permitir-lhe a obtenção de um lugar permanente no 
Conselho de Segurança da ONU. A adesão ao TNP, ao Regime de Controle de 
Tecnologia de Mísseis (MTCR), e a outros tratados assimétricos e 
discriminatórios, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), que sagravam a 
predominância dos Estados Unidos e das potências ricas e nucleares, constituíram 
aspectos marcantes de tal esforço,. 
Entretanto, a adoção de políticas econômicas neoliberais, como conseqüência da 
renegociação da dívida externa e das condicionalidades estabelecidas pelo Fundo 
Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, tais como redução do Estado, 
através da privatização, desregulamentação e reforma institucional, bem como a 
manutenção de um regime de taxas fixas ou semi-fixas de câmbio, em geral, 
sobre-valorizado, aumentaram enormemente a vulnerabilidade externa do Brasil, 
sobretudo a partir de 1999. A privatização, ou melhor, a estrangeirização das 
empresas estatais, dos setores de telefonia e energia elétrica e outros, com a 
entrega do seu controle aos capitais estrangeiros, foi um dos aspectos mais 
perversos das políticas neoliberais, pois, nada contribuindo para o aumento das 
receitas de exportação, essas empresas, desnacionalizadas, passaram a pressionar 
o balanço de pagamentos, agravando o desequilibro, com a transferência de lucros 
para as suas matrizes no exterior. O déficit na balança de serviços saltou de 
US$ 15,3 bilhões, em 1990, quando o processo inflacionário se intensificara no 
Brasil, para US$ 28,8 bilhões, em 1998, e o déficit nas transações correntes 
pulou de US$ 3,7 bilhões para US$ 33,6 bilhões, no mesmo período. Com um déficit 
comercial acumulado, entre 1995 e 1999, da ordem de US$ 24,9 bilhões, após anos 
consecutivos de saldo positivo, o Brasil defrontou-se com a necessidade de ter 
de captar, anualmente, cerca de US$ 40 bilhões a US$ 50 bilhões, no mercado 
internacional, para atender aos compromissos com o pagamento de juros e 
transferência de lucros, fretes e royalties, bem como amortizar os 
empréstimos e fechar as contas externas. 
Não obstante o forte apoio dado ao Brasil, diretamente, pelo presidente dos 
Estados Unidos, Bill Clinton, quando ocorreu a crise financeira de 1999, o 
projeto da ALCA, tal como pretendido por Washington, continuou como o nervo mais 
sensível das divergências entre o Brasil e os Estados Unidos, na medida em que 
os objetivos econômicos, políticos e estratégicos dos dois países se 
contradiziam, encapados pelo conflito de interesses comerciais. O escopo da ALCA 
consistia em revivificar a Doutrina Monroe, em sua dimensão econômica e 
comercial, e permitir aos Estados Unidos não apenas restabelecer sua hegemonia 
sobre a América Latina como enfrentar a União Européia, embrião do futuro Estado 
europeu (meta do Tratado de Maastricht) do qual a Alemanha, que já incorporava 
ao seu espaço econômico a Rússia e os demais países do extinto Bloco Socialista, 
constituía o epicentro. Fernando Henrique Cardoso, depois da aprovação Trade 
Promotion Authority (TPA), pela Câmara de Representantes, em fins de 2001, 
afirmou que, "se as condicionantes forem levadas ao pé da letra, isto significa 
que não haverá ALCA". E acrescentou, enfaticamente, que "a ALCA será aceita ou 
não dependendo do nosso interesse. Tem que ser uma toma lá da cá". 
Fernando Henrique Cardoso manteve bom relacionamento direto com Boll Clinton, 
mas as divergências com os Estados Unidos explicitaram-se em várias outras 
questões de política exterior, com respeito, sobretudo, à América do Sul, e à 
possível intervenção armada na Colômbia, a pretexto de combater a narcoguerrilha, 
assim denominada porque os negócios da droga se converteram na mais importante 
fonte de financiamento da insurgência política. O Brasil proibiu a utilização do 
seu território para qualquer operação militar na Colômbia, porquanto contrariava 
os princípios de não-intervenção e auto-determinação, que pautavam 
tradicionalmente sua política exterior. E continuou a não aceitar que, sob 
pretexto estratégico-militar ou de combate ao narcotráfico, os Estados Unidos 
estendessem suas instalações militares à Amazônia brasileira, cuja defesa sempre 
preocupou as Forças Armadas brasileiras, que passaram a implementar a "estratégia 
de resistência", como hipótese de guerra contra uma potência tecnologicamente 
superior. 
A partir de ascensão de George W. Bush à presidência dos Estados Unidos, a 
política exterior d Brasil afigurou-se deveras contraditória. O chanceler Celso 
Lafer demitiu o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, da diretoria do IPRI, 
porque criticava a ALCA e, depois, aceitou que os Estados Unidos destituíssem 
ilegalmente o embaixador José Maurício Bustani da direção da OPAC. Essas 
iniciativas e atitudes subservientes e servis de Celso Lafer, que se configurou 
como o pior chanceler na história do Itamaraty, não foram consistentes com os 
incisivos e altivos pronunciamentos de Fernando Henrique Cardoso, que talvez 
para arrefecer a repercussão altamente negativa que teve a demissão do 
embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, voltou a manifestar-se, de maneira mais 
categórica sobre a ALCA. Em discurso na III Cúpula das Américas, em Quebec (22 
de abril), ela declarou que a ALCA seria "bem-vinda" se sua criação fosse um 
passo para dar acesso aos mercados mais dinâmicos; se efetivamente fosse o 
caminho para regras compartilhadas sobre anti-dumping; se reduzisse as barreiras 
não-tarifárias; se evitasse a distorção protecionista das boas regras sanitárias; 
se, ao proteger a propriedade intelectual, promovesse, ao mesmo tempo, a 
capacidade tecnológica de povos; e se fosse além da Rodada Uruguaia, corrigindo 
as assimetrias então cristalizadas, sobretudo na área agrícola. "Não sendo assim, 
seria irrelevante ou, na pior das hipóteses, indesejável" - concluiu. 
Após os atentados terroristas que destruíram as torres gêmea do WTC e de parte 
do Pentágono, com mais de 3.000 mortos, Fernando Henrique Cardoso, na mesma 
manhã de 11 de setembro, telefonou para Bush, a fim de emprestar-lhe integral 
solidariedade, e Celso Lafer tomou a iniciativa de convocar uma reunião do Órgão 
de Consulta da OEA, invocando o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca 
(TIAR), conhecido como Tratado do Rio de Janeiro, alegando que "a excepcional 
gravidade dos ataques e a discussão de seus desdobramentos" justificavam o 
recurso ao mecanismo de segurança coletiva do hemisfério. Três dias depois, 
declarou que o Brasil poderia participar da guerra, se viesse a ocorrer, 
apoiando uma ação militar dos Estados Unidos, desde que o grupo terrorista que 
atacou as torres do World Trade Center e o Pentágono fossem identificados. E, 
durante a XXIV Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, em 21 
de setembro, afirmou que "as mais de cinco décadas decorridas desde a assinatura 
do TIAR não lhe retiram a validade". Seu propósito declarado foi criar uma 
"moldura jurídica de cooperação, compatível com as resoluções da ONU", com a "vantagem" 
de excluir o Brasil do compromisso de emprego da força armada no trato do 
terrorismo, delimitando juridicamente a manifestação política de solidariedade. 
Essa foi a explicação que também ofereceu a Fernando Henrique Cardoso. Porém, a 
invocação do TIAR, cujo Art. 3 indicava que "um ataque armado por parte de 
qualquer Estado a um Estado americano será considerado um ataque contra todos os 
Estados americanos", foi evidentemente inepta. O ataque contra o World Trade 
Center e o Pentágono não partira de nenhum outro Estado nacional, como em Pearl 
Harbor (1941). Conquanto pudesse ser considerada uma ação bélica, não prevista 
na normativa internacional de guerra, ela partiu de um inimigo difuso, disperso, 
que recorreu ao terrorismo, mesmo à custa de suicídio, porque não dispunha de 
mísseis e outras armas para atacar os Estados Unidos. A convocação do Órgão de 
Consulta da OEA, agravada pela declaração de que o TIAR, instrumento da Guerra 
Fria, não perdera a validade, constituiu, portanto, uma toleima, sobretudo 
depois que o presidente de México, Vicente Fox, em reunião do Conselho 
Permanente da OEA, anunciara o propósito de denunciá-lo, dizendo que ele 
representava não só um "caso grave de obsolescencia e inutilidad", como a 
guerra das Malvinas (1982) demonstrara, "sino que ha impedido, en contra de 
sus propósitos, la generación de una idea de seguridad adecuada a los alcances y 
necesidades del hemisferio". Segundo Fox explicara, com muita lucidez, a 
nova arquitetura do sistema internacional, punha em evidencia que esse 
instrumento se tornara "inservible, puesto que surgió de causas y realidades 
que han desaparecido", e a vulnerabilidade das nações, no novo sistema 
globalizado, já não derivava, primordialmente, de considerações militares, razão 
pela qual os instrumentos desenhados no passado e concebidos para outras 
condições foram superados pelos fatos. Era, por tanto, "indispensable 
reconocer el anacronismo del Tratado de Río, el cual surgió como una emergencia 
y de acuerdo a las condiciones de la época". 
As atitudes de Celso Lafer concorreram, fortemente, para consolidar a percepção 
de que a política exterior de Fernando Henrique Cardoso, assim como a política 
econômica, de maneira geral, constituiu simples acessório dos interesses 
hegemônicos dos Estados Unidos, no mundo e, em especial, na América Latina. E 
contribuíram para desgastar ainda mais o prestígio do governo, ao projetar a 
imagem de subserviência aos desígnios dos Estados Unidos, em meio de uma gestão 
turbulenta, como nunca houve, a pior na história do Itamaraty. E não se 
afiguraram consistentes com os pronunciamentos de Fernando Henrique Cardoso, 
contrários à política exterior de George W. Bush, que se recusara a ratificar o 
Protocolo de Kyoto - sobre a redução da emissão de gases–estufa - bloqueara os 
esforços internacionais para fortalecer a Biological Weapons Convention, 
denunciara o Tratado ABM (Anti-Balistic Missile Agreement), e retirara a adesão 
dos Estados Unidos ao tratado que criou a Corte Penal Internacional contra os 
crimes de guerra, instituída em Haia pela ONU, além de intensificar pressões 
sobre outros países para isentar os cidadãos americanos de sua jurisdição. Pouco 
tempo depois de Lafer invocar o inepto Tratado do Rio de Janeiro, em face dos 
atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Fernando Henrique Cardoso, em 
discurso na Assembléia Nacional da França, referiu-se aos Estados Unidos, ao 
proclamar que "a barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a 
intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária". E, 
durante a visita ao presidente George W. Bush, em Washington, salientou, 
diplomaticamente, que havia, "from time to time, some difference" entre 
Brasil e Estados Unidos, e, lembrando que na véspera "the President (Bush)
said to be American first", completou: "Well, I would say the 
same, to be Brazil first. That's normal.  But then let's see how to cooperate".
O governo de Fernando Henrique Cardoso, qualquer que fosse seu propósito de 
cooperar com os Estados Unidos, não podia deixar de atender e responder aos 
interesses concretos do Brasil – econômicos, sociais e políticos - gerados e 
modelados pelo processo produtivo, que o Estado nacional, como instância 
superior de organização e comando da sociedade, devia articular e representar. E 
a ALCA, em realidade, não convinha ao Brasil, sob vários aspectos. Um estudo 
divulgado em 2 de maio de 2002 pela Secretaria da Receita Federal demonstrou que 
os Estados Unidos, México e Canadá seriam os países mais beneficiados com a 
formação da ALCA, cujo comercio estaria concentrado em empresas multinacionais, 
que sempre distorceram os preços, o mais das vezes, para transferir lucros ou 
prejuízos de um país para outro. A Federação das Indústrias do Estado de São 
Paulo (FIESP), por sua vez, calculou que o Brasil perderia US$ 1 bilhão por ano 
em seu comercio exterior, a partir de 1º de janeiro de 2006, data prevista para 
a implantação da ALCA, posto que suas importações ultrapassariam US$ 2,254 
bilhões, enquanto as exportações somente aumentariam cerca US$ 1.252 bilhões, o 
que agravaria a sua vulnerabilidade, com um crescente déficit em suas contas 
externas. Também a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) concluiu 
que a ALCA trazia mais ameaças que oportunidades para Brasil, levando-o a perder 
o mercado, dentro do hemisfério, para 176 produtos exportados por suas empresas, 
principalmente nos setores de manufaturados, o seja, máquinas e equipamentos, 
automóveis, papel e celulosa e produtos químicos, em virtude da concorrência dos 
Estados Unidos e Canadá. E outro estudo, realizado pelos pesquisadores da 
Universidade de Campinas, a pedido do Ministro do Desenvolvimento, Indústria e 
Comércio Exterior de Brasil, embaixador Sergio Amaral, chegou à mesma conclusão 
de que a implantação da ALCA, de um lado,vai incrementar as importações do 
Brasil e, por outro, inibir suas exportações para os países de América Latina, 
ademais de afastar os investimentos estrangeiros, promover a "desindustrialização 
e desnacionalização" da economia, ocasionando o aumento do desemprego e da 
demanda por dólares, após analisar 18 cadeias produtivas - os setores que 
produzem 53,1% do o faturamento industrial nacional, 57% das exportações y 68,4% 
das importações totais do país. O Brasil tenderia a regredir à condição de país 
agro-exportador e produtor de manufaturas leves ou bens de consumo, uma vez que 
a área de livre comércio provocaria a destruição de boa parte do seu parque 
industrial, particularmente nos setores mais sofisticados, em que os Estados 
Unidos, sem dúvida, predominavam. Não sem razão Fernando Henrique Cardoso 
reconheceu que era más fácil, "ideológica e politicamente", negociar acordos 
comerciais com a União Européia do que com os Estados Unidos, para a formação da 
ALCA, pois apresentavam menos riscos para a soberania do Brasil..
A política exterior de Lula.
Luiz Inácio Lula da Silva, como candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), à 
presidência da República, declarou, durante a campanha eleitoral, que a ALCA não 
constituía uma proposta de integração, "mas uma política de anexação, e nosso 
país não será anexado". Como candidato, Lula da Silva podia dizer, livremente, o 
que pensava. Como chefe do governo, entretanto, tinha de preservar o 
relacionamento do Brasil com os Estados Unidos. Assim, mais por conveniência 
política do que propriamente por interesses comerciais, não afastou o Brasil das 
negociações para a formação da ALCA. E a nomeação dos embaixadores Celso Amorim 
e Samuel Pinheiro Guimarães, que Celso Lafer demitira do IPRI devido aos seus 
pronunciamentos contra a ALCA, para os cargos de ministro das Relações 
Exteriores e secretário-geral do Itamaraty, respectivamente, demonstrou que o 
Brasil buscaria com os Estados Unidos uma "parceria madura, com base no 
interesse mútuo", como Lula da Silva declarou no seu discurso de posse, e não 
fundada na submissão e subserviência. Essa diretriz produziu certo esfriamento 
nas relações entre os dois países, após a inauguração do seu governo, em 1° de 
janeiro de 2003. Algumas tensões surgiram por causa da greve geral na Venezuela, 
promovida pela oposição, com o discreto beneplácito de Washington, visando à 
derrubada do presidente Hugo Chávez, cujo governo constitucional o Brasil estava 
a respaldar, desde, aliás, os últimos dias do mandato de Fernando Henrique 
Cardoso. Lula da Silva também criticou a guerra contra o Iraque, deflagrada 
pelos Estados Unidos para atender, entre diversos fatores, aos interesses das 
indústrias bélicas e companhias petrolíferas americanas. "O presidente Bush 
(...) desrespeita a ONU, não leva em conta o Conselho de Segurança e o que pensa 
o restante do mundo. Acho que isso é grave. Grave para o futuro da ONU, que é 
uma referência de comportamento para as nações do mundo inteiro" – disse Lula da 
Silva. 
Tais críticas não impediram que ele, ao visitar Washington, 20 de junho de 2003, 
declarasse crer que as relações entre o Brasil e os Estados Unidos poderiam "surpreender 
o mundo". Apesar de que existiam diferenças de posições e de percepções, e de 
profundas divergências também na área comercial, difíceis de resolver, um bom 
relacionamento entre o Brasil e o Estados Unidos convinha tanto a Lula da Silva 
quanto a George W. Bush. E os dois presidentes empenharam-se em evitar que essas 
divergências nas negociações comerciais, tanto na OMC quanto na ALCA, 
contaminassem o restante das relações bilaterais. Contudo, da mesmo forma que 
Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, que buscaram estabelecer um bom 
relacionamento entre os dois países, Lula da Silva não conseguiu evitar as 
divergências e atritos, conquanto mantivesse a política de estabilização 
econômica e financeira, de acordo com o FMI, fim de evitar a fuga de capitais e 
o retorno da inflação. A contenda, sobretudo em torno da ALCA/Mercosul, 
recrudesceu, agravada por outros litígios, na medida em que os interesses 
nacionais do Brasil passaram a prevalecer como vetor da sua política exterior, 
em contradição com as pretensões imperiais dos Estados Unidos, exacerbadas na 
administração de George W. Bush. E as negociações entre o Brasil e os Estados 
Unidos chegaram a um impasse. 
O projeto da ALCA ia muito além do chamado livre comércio, em sentido estrito. 
Incluía aspectos normativos para serviços, investimentos, compras governamentais 
e propriedade intelectual que incidiam diretamente sobre a capacidade reguladora 
dos países. Por outro lado, os Estados Unidos não se dispunham a oferecer livre 
acesso ao seu mercado, o maior do hemisfério, para os produtos em que o Brasil 
apresentava vantagens comparativas (sobretudo, mas não apenas agrícolas), e 
excluíam das negociações aspectos de importância prioritária, como os subsídios 
agrícolas e as medidas anti-dumping. Além do açúcar, a commodity mais 
protegida nos Estados Unidos, dois dos produtos brasileiros mais competitivos – 
aço e suco de laranja – sofriam restrições tarifárias e não-tarifárias, que 
visavam a proteger os fabricantes americanos e impediam o aumento das 
exportações do Brasil. E os Estados Unidos sinalizaram que não eliminariam os 
subsídios para esses produtos até o que a questão não fosse resolvida, no âmbito 
da OMC, com os países da União Européia. Isto significava como conseqüência do 
acordo entre a França e a Alemanha, que, não haveria qualquer alteração em sua 
política agrícola até 2007 e que aqueles produtos brasileiros tampouco teriam 
acesso preferencial ao mercado americano, através da ALCA. Os Estados Unidos 
igualmente se recusavam a tratar da lei anti-dumping, que permitia ao governo de 
Washington aplicar medidas de salvaguarda a produtos que eles considerassem que 
estavam sendo importados a preços sub-valorizados. Cláusula nesse sentido 
constava das provisões do NAFTA e o Brasil não a aceitava, na ALCA, pois 
constituía uma das barreiras não tarifárias, levantadas freqüentemente pelos 
Estados Unidos para proteger suas indústria ineficientes. 
O governo de Lula da Silva outrossim se opôs a acordos que somente resultariam 
em prejuízo para o Brasil e não aceitou uma redução de tarifas, que tivesse como 
base o percentual aplicado, menor que o consolidado na OMC, como fizera o 
governo de Fernando Henrique Cardoso. "Em vez de nos prendermos a concepções 
irrealistas de uma ALCA, em torno das quais o consenso se afigura inatingível, 
preferimos nos concentrar na ‘ALCA possível’, que concilie da maneira mais 
produtiva os objetivos necessariamente diferenciados dos 34 países 
participantes" – escreveu Celso Amorim, esclarecendo que foi "a partir desse 
enfoque consistente e realista" que a declaração conjunta na reunião dos 
presidentes Lula da Silva e George W. Bush, em Washington, expressou o 
entendimento de que os dois países cooperariam para que as negociações fossem 
concluídas, com êxito, nos prazos previamente acordados, os quais, entretanto, 
não podiam prevalecer sobre o conteúdo. Segundo Celso Amorim, o governo do 
presidente Lula da Silva não haveria de aderir a acordos que fossem 
incompatíveis com os interesses brasileiros, embora tratasse de explorar, 
soberanamente, todas as alternativas para a promoção do comércio e a aceleração 
do desenvolvimento nacional. 
Essa resistência a aceitar acordo incompatíveis com seus interesses nacionais, 
levou o Brasil e os Estados Unidos a um atrito, de profunda repercussão, nas 
negociações, durante a 5.ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do 
Comércio (OMC), realizada em Cancun (México), em 14 de setembro de 2003. O 
Brasil coordenou a formação de um bloco chamado G-21, liderando, dentro da OMC, 
os países emergentes, como Índia, China, México, África do Sul e Indonésia, que 
não se dispunham a prosseguir com a agenda, que só interessava às potências 
industriais, depois de já haverem reduzido tarifas de bens manufaturados e 
adotado regras sobre patentes, sem que nada lhes fosse concedido quanto à 
liberalização do comércio agrícola. Assim, os delegados de 146 países não 
alcançaram em Cancun nenhum entendimento em relação aos dois principais temas da 
agenda, agendados nas reuniões de Cingapura (1996) e Doha (2001). Os Estados 
Unidos e a União Européia pretenderam obter um acordo,sujeitando investimentos, 
concorrência, compras governamentais e facilitação das trocas às regras do 
comércio internacional, mas não quiseram discutir os subsídios que concediam, 
anualmente, aos produtos agrícolas e prejudicavam as exportações dos países em 
desenvolvimento. "A diplomacia brasileira foi a grande vencedora de Cancun ao 
impedir que o comércio agrícola prosseguisse dando cobertura aos interesses da 
União Européia e dos Estados Unidos, por efeito de manobras diplomáticas dos 
países que detêm maior poder mundial" – comentou o professor Amado Cervo, 
concluindo que "o ministro Celso Amorim ergueu uma obra de gênio da engenharia 
política", ao coordenar a formação do G-21 (ou G-mais, como ele preferiu 
chamar), o grupo de países em desenvolvimento, reunindo a China, Índia, África 
do Sul, Argentina, México, Chile, praticamente toda a América Latina, a 
Tailândia, Filipinas, Paquistão, Egito e outros. Esses países, que representavam 
mais de 55% da população mundial, quase 69% da produção agrícola e a maioria dos 
pobres de todos os continentes, não mais aceitaram a diferença de tratamento que 
se estabeleceu quando o GATT, no início da década de 50 do século XX, aprovou um 
"waiver", ou seja, uma exceção para a agricultura, a pedido dos Estados 
Unidos, e pouco tempo depois julgou como produtos agrícolas o agribusiness, 
ou seja, produtos agro-industriais, tais como óleo e farinha de soja, farinha de 
trigo, azeite de oliva etc., permitindo que os Estados Unidos, França, Alemanha, 
Japão e outros potências industriais pudessem conceder-lhes, anualmente, 
subsídios, no valor mais de US$ 300 bilhões, e exportá-los fora das normas de 
mercado. Segundo informação do Banco Mundial, o governo americano destinava, 
anualmente, US$ 3 bilhões às subvenções para o plantio de algodão nos Estados 
Unidos. E cerca de ¼ dos grandes empresários rurais, nos Estados Unidos e na 
União Européia, ganharam, durante a década de 90 do século XX, subsídios, que 
lhes possibilitaram produzir muito mais colheitas do que necessárias para o 
consumo doméstico e vender o excedente, no mercado mundial, a preços mais baixos 
do que os países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina. 
O impasse na reunião da OMC representou uma derrota para a União Européia e, 
especialmente, um fiasco para os Estados Unidos, evidenciando as enormes 
dificuldades que teriam para avançar nas negociações sobre a ALCA. O governo de 
George W. Bush intensificou então as pressões sobre os países sul-americanos, 
como a Colômbia, para que se afastassem da posição do Brasil e do Mercosul, com 
vistas à reunião sobre a ALCA, em Miami. Esse comportamento, o chanceler Celso 
Amorim criticou com dureza, dizendo que era uma "coisa muito lamentável, muito 
destrutiva", posto que os Estados Unidos não estavam a convencer os países, que 
integraram o G-plus, liderado pelo Brasil, "mas fazendo ameaças". O 
embaixador Adhemar Bahadian, encarregado das negociações pelo Itamaraty, previu, 
por sua vez, que a ALCA poderia não sair do papel. De fato, a turbulência 
continuou a abalar as negociações. O confronto entre o Brasil e os Estados 
Unidos, explicitado em Cancun, tornara inevitável o colapso da reunião da 
Comissão de Negociação Comercial (CNC), a instância técnica das negociações 
sobre a ALCA, que se reuniu entre 1° e 3 de outubro, em Porto of Spain, capital 
de Trinidad & Tobago. Após intensas conversações, devido à resistência do 
Uruguai, o Brasil, com o apoio da Argentina e dos países do Mercosul, apresentou 
uma proposta conjunta, a ser debatida na reunião dos ministros, marcada para 
novembro, em Miami. Essa proposta colocou as negociações em "três trilhos", 
prevendo a derrubada de barreiras comerciais para outros países em 
desenvolvimento em um prazo menor que o que viesse a ser fixado para Canadá e 
Estados Unidos e deixando os temas sensíveis, como normas de proteção a 
investimentos e à propriedade intelectual, bem como a abertura de compras 
governamentais e serviços aos fornecedores estrangeiros, para serem negociados, 
separadamente, pelos países que quisessem. O que acarretou o fracasso da reunião 
foi, então, o mesmo impasse que ocorrera em Cancun. 
Entrementes, por mais que os governos de Lula da Silva e George W. Bush se 
esforçassem para que os atritos na área comercial não repercutissem sobre as 
relações bilaterais, as tensões recresceram. O governo americano, em janeiro de 
2004, instituiu o US-VISIT" (United States Visitor and Immigrant Status 
Indicator Technology), o programa que estabelecia o controle total do 
ingresso de visitantes, por meio de fotografias e sistemas computadorizados de 
reconhecimento de face e digitais, nos 115 portos marítimos e aeroportos dos 
Estados Unidos, de todos os estrangeiros, oriundos de países que necessitassem 
de visto para entrar nos Estados Unidos. A medida, executada pelo Homeland 
Security Secretary, atingiu os visitantes de todos países, inclusive o Brasil, 
excetuando, porém, apenas 27, a maioria europeus. Como conseqüência, do juiz da 
1ª Vara Federal de Mato Grosso, Julier Sebastião da Silva, de Mato Grosso, 
acolheu a Ação Cautelar Inominada, movida pelo procurador da República, José 
Pedro Taques, concedendo uma liminar, e determinou que Polícia Federal impusesse 
aos turistas americanos o mesmo tratamento a que seriam submetidos os 
brasileiros em viagem aos Estados Unidos. Na sua decisão, ao acolher o argumento 
do procurador José Pedro Taques de que, "se eles (os americanos) podem supor que 
todo estrangeiro é terrorista, nós também estamos autorizados a fazer o mesmo", 
o juiz Julier Sebastião da Silva, observando que, de acordo com a nova 
determinação do governo americano, "pessoas de várias nacionalidades, 
consideradas desde logo terroristas em potencial", deveriam ser fotografadas e 
teriam suas impressões digitais recolhidas pelas autoridades norte-americanas 
assim que entrassem ou deixassem os Estados Unidos, ressaltou que, obviamente, 
os cidadãos europeus e de outros países ricos não seriam objeto do "ato 
ultrajante", o qual seria reservado aos nacionais de países pobres da América 
Latina, África, Oriente Médio e Ásia. No entanto, uma vez que no direito 
internacional público, vigia o chamado princípio da reciprocidade, de modo que 
as relações entre Estados não se realizassem de forma desigual, principalmente 
em se tratando da dignidade da pessoa humana e de proteção e resguardo dos 
direitos humanos, o juiz Julier Sebastião da Silva deferiu o pedido de concessão 
de medida liminar e determinou à União Federal, que fizesse gestões junto às 
autoridades norte-americanas no sentido de que os brasileiros fossem excluídos 
da exigência que passaria a vigorar a partir do dia 1 de janeiro de 2004 para 
entrada e saída dos Estados Unidos da América. Enquanto perdurasse a restrição 
imposta pelas autoridades norte-americanas, a Polícia Federal devia recolher as 
impressões digitais dos nacionais dos Estados Unidos, nos portos, aeroportos e 
rodovias, quando entrassem em território brasileiro, "sob pena de ser-lhes 
negada a entrada devida". 
A medida, determinada pelo juiz federal Juvelier Sebastião da Silva, afetou, 
naturalmente, o relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos, ao gerar mais 
um foco de tensões. A Embaixada Americana, em Brasília, emitiu uma nota, na qual 
dizia compreender o direito soberano que o Brasil tinha para determinar quais 
são os requisitos de entrada no país, mas lamentava a forma pela qual os novos 
procedimentos foram iniciados, repentinamente, discriminando cidadãos dos 
Estados Unidos, com tratamento excepcional que resultou em longos atrasos no 
processamento, quando alguns cidadãos norte-americanos tiveram que esperar mais 
de nove horas em sua chegada no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. 
O fracasso dos Estados Unidos na tentativa de impor seus interesses, tanto em 
Cancun quanto em Port of Spain, indicou, claramente, que a ALCA, conforme 
projetada em 1994, se frustrara. E, de fato, frustrou-se. A fim de evitar o 
impasse e outro fiasco, na 8.ª Reunião Ministerial, realizada em Miami, os 
Estados Unidos fizeram concessões e aceitaram um acordo, em torno do formato da 
ALCA, proposto pelo Brasil (ALCA light e a la carte), e desenhado 
uma semana antes, em reunião prévia, entre Robert B. Zoellick e Celso Amorim. 
Nem os Estados Unidos insistiriam nos itens rejeitados pelo Brasil, tais como 
compras governamentais, serviços etc., nem o Brasil exigiria, como 
contrapartida, que fosse discutida a questão dos subsídios agrícolas e lei 
anti-dumping, que os Estados Unidos não queriam. O acordo resultou de 
concessões, com base em uma concepção mais flexível da ALCA, a ALCA Light, 
fatiada em três trilhos, tal como o Brasil pretendera, restrita aos temas sobre 
os quais havia consenso e a um conjunto mínimo de obrigações comuns, regras 
básicas, nas 11 áreas em negociação, mas permitindo que cada país fizesse 
acordos em separado, nas áreas que lhe conviessem. Esse entendimento somente 
ocorreu quando o governo dos Estados Unidos, que percebia o chanceler Celso 
Amorim como inimigo ideológico da ALCA, constatou que a campanha contra o 
Itamaraty, com o apoio do lobby e de alguns órgãos da mídia dentro do 
Brasil, não alcançara nenhum resultado e que o fiasco de Cancun se poderia 
reproduzir na 8ª Reunião Ministerial, em Miami, Florida, estado governado por 
Jeb, irmão de George W. Bush. 
O governo de Lula não pretendera confrontar os Estados Unidos. Apenas tratou de 
conduzir as negociações sobre a ALCA de conformidade com os interesses do 
Brasil. Indagado pelos repórteres Eurípedes Alcântara e Vilma Gryzinski, da 
revista Veja, sobre o que o Brasil aceitaria perder na ALCA, o chanceler 
Celso Amorim, prontamente, respondeu: .
"Não aceitamos perder a dignidade. Não vamos aceitar modelos que vêm prontos, 
tudo tem de ser negociado. O que acontecia antes era uma falsa negociação. As 
coisas vinham vindo e, no máximo, eram postergadas. A principal barreira, os 
subsídios, os Estados Unidos não discutiam" . .
Ele explicou que os temas de natureza normativa e sistêmica tinham de ser 
discutidos na OMC, pois não fazia sentido estabelecer uma regra de propriedade 
intelectual para os Estados Unidos e outra para a União Européia. Este princípio 
era também válido para normas de investimentos e serviços. E, na questão das 
compras governamentais, o interesse do Brasil consistia, sobretudo, em preservar 
sua capacidade de seguir com uma política de desenvolvimento, como no caso da 
Petrobrás, que prorizava as indústrias brasileiras na aquisição de equipamentos 
para as plataformas de petróleo, o que não mais poderia fazê-lo, se esse setor 
fosse aberto à concorrências das corporações americanas. As indústria 
brasileiras de máquinas e equipamentos, principal fator de autotransformação e 
auto-sustentação do capitalismo, seriam, possivelmente, destruídas pelas grandes 
corporações americanas, levando milhares de trabalhadores ao desemprego. 
Ao mesmo tempo em que resistia às fortes pressões para que aceitasse tais itens 
na ALCA, o Brasil sinalizou mais uma vez a autonomia com que implementava sua 
política exterior. Em 26 de setembro de 2003, Lula da Silva visitou Havana, onde 
firmou com Fidel Castro 12 instrumentos de cooperação em matéria financeira, 
turismo, saúde agricultura, pesca, meio ambiente, educação e industria 
siderúrgica, e acordos comerciais, no montante de US$ 200 milhões, uma parte com 
financiamento aprovado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social 
(BNDES), outra com recursos privados de empresas brasileiras, tais como o Grupo 
Brasilinvest e a construtora Casa Forma (US$ 112 milhões), para a construção de 
quatro resorts em Cuba. Entre 2 e 9 de dezembro, acompanhado pelo 
presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul, Eduardo 
Duhalde, ele visitou cinco países árabes - Emirados Árabes Unidos (EAU), Síria, 
Líbano, Egito e Líbia. E, mostrando mais uma vez o intuito de solidificar a 
integração com a Argentina, no Mercosul, visitou a Índia, em 26 de janeiro de 
2004, acompanhado por Eduardo Duhalde. A estratégia de política exterior do 
governo de Lula da Silva consistiu, assim, em construir, primordialmente, 
vínculos estreitos de cooperação política e econômica entre Brasil e Argentina, 
visando a forjar, a médio prazo, um pólo de poder, na América do Sul, e buscar, 
ao mesmo tempo, estabelecer uma aliança, tanto econômica e comercial quanto 
política, com a Índia e África do Sul, líderes dos países em vias de 
desenvolvimento, que articularam o G-21 para obstar que os as potências 
industriais, Estados Unidos e União Européia, impusessem seus interesses, 
durante as negociações da OMC, realizadas Cancun. Esse bloco de países em 
desenvolvimento deveria também abranger também a China e a Rússia, países com o 
quais o Brasil também pretendia aprofundar as relações comerciais e políticas, a 
fim de conquistar novos e diversificar suas exportações. Não se tratava de 
hostilizar ou afrontar os Estados Unidos, mas de mudar a "geografia da 
negociação comercial", como disse o chanceler Celso Amorim, e negociar de forma 
equilibrada, defendo os interesses do Brasil. 
A contenda entre o Brasil e os Estados Unidos decorreu, não de uma posição 
ideológica do governo de Lula da Silva, mas da contradição entre os interesses 
reais dos dois países. Por motivos de política doméstica, os Estados Unidos não 
aceitavam diminuir o subsídio dos produtos que exportavam para o Brasil, e não 
davam compensações em acesso a mercados para produtos agrícolas do Mercosul. E 
seu interesse na formação da ALCA não consistia na redução das barreiras 
tarifárias, mas em forçar basicamente a abertura de setores estratégicos, como 
as compras governamentais e serviços, de modo que pudessem continuar obter 
superávits nas suas transações com os países do Mercosul. Esses termas, a fim de 
evitar que se repetisse na reunião de Miami o fiasco de Cancun, foram 
transferidos para posterior discussão na OMC e se estabeleceu um acordo em torno 
da ALCA Light, conforme o Brasil propusera. Entretanto, na reunião de 
Puebla (México), que se realizou entre 3 e 6 de fevereiro para prosseguir com as 
negociações, os Estados Unidos, rompendo o acordo de Miami e liderando um grupo 
de 14 países, entre os quais Canadá, México, Chile e os da América Central e 
Caribe (G-14), voltaram a insistir em uma ALCA "abrangente", com os itens 
relativos a compras governamentais, investimentos, serviços e propriedade 
intelectual, sem que aceitassem eliminar os subsídios e subsídios indiretos às 
exportações agrícolas - créditos e seguros - bem como nada propuseram para os 
outros temas que o Mercosul considerava importante: créditos, seguros e ajuda 
interna. O secretario de Relações Econômicas Internacionais da Argentina, Martín 
Redrado, advertiu que o êxito ou o fracasso da reunião de Puebla dependia da 
vontade de negociação dos Estados Unidos, uma vez que o Mercosul já havia cedido 
bastante, os Estados Unidos não haviam "movido una sola coma en su posición 
agrícola". E, "sin agricultura no hay acuerdo" - disseram Martín 
Redrado e o co-presidente das negociações, o embaixador brasileiro Adhemar 
Bahadian, quando mediavam as deliberações. Esta era uma condição inamovível. Bem 
o chanceler Celso Amorim advertira que, se os Estados Unidos quisessem forçar 
demais, nada iriam conseguir, nem com o Brasil nem com outros países da América 
do Sul. Com efeito, a reunião de Puebla terminou em um fiasco, como a de Cancun, 
e as negociações sobre a ALCA chegaram a um impasse, difícil de superar até 
2005, prazo para o seu encerramento, estabelecido em 1994. 
As tensões no relacionamento de Brasília com Washington não se restringiram, no 
entanto, às negociações sobre a ALCA ou à imposição aos turistas americanos do 
mesmo tratamento a que seriam submetidos os brasileiros em viagem aos Estados 
Unidos, com a vigência do "US-VISIT" (United States Visitor and Immigrant 
Status Indicator Technology), o programa de identificação dos visitantes, 
por meio de fotografias e sistemas computadorizados de reconhecimento de face e 
digitais, estabelecido pelo governo de George W. Bush. A medida determinada pelo 
juiz federal Juvelier Sebastião da Silva causou enorme impacto político e contou 
com o apoio de 99% da opinião pública brasileira. E, através de Portaria 
Interministerial 10/01, assinada pelos ministros da Justiça e Relações 
Exteriores, Márcio Thomaz Bastos e Celso Amorim, respectivamente, e pelo 
advogado-geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, o governo manteve a 
identificação dos americanos, em todos os portos marítimos, aeroportos e 
rodovias. Em seguida, Lula da Silva viajou para participar da Cúpula 
Extraordinária das Américas, nos dias 12 e 13 de janeiro, em Monterrey (México), 
onde conversou com George W. Bush sobre a questão da obrigatoriedade de 
identificação (fotográfica e datiloscópica) de brasileiros e americanos, e 
entregou-lhe um documento em que propunha a eliminação da exigência de visto 
para a entrada de brasileiros nos Estados Unidos, o que eliminaria idêntica 
exigência para o ingresso dos americanos no Brasil. "Se estamos querendo 
integração das Américas é natural que tenha que haver não dificuldades, mas 
facilidades para as pessoas" - comentou Celso Amorim. De fato, a aplicação do 
programa "US-VISIT" evidenciara a dubiedade do governo americano, que instituir 
a área de livre comércio, permitindo a livre circulação de bens, capitais e 
serviços, mas, ao mesmo tempo, e discriminava o Brasil e os países da América 
Latina. 
À mesma época, outra área de conflito com os Estados Unidos configurou-se. O 
Brasil estava a converter-se no sétimo país a produzir urânio enriquecido, em 
escala industrial, com capacidade para suprir 60% das necessidades de suas 
usinas nucleares, e exportar até US$ 12,5 milhões ao ano, a partir de 2014, 
conforme o presidente o presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear 
(CNEN), Oldair Dias Gonçalves, anunciara em outubro de 2003. E em dezembro de 
2003, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), encorajada pelo 
Departamento de Estado, começou a pressioná-lo para que firmasse um acordo de 
salvaguarda, que cobrisse as instalações da empresa estatal Indústrias Nucleares 
do Brasil (INB), em Resende, Estado do Rio de Janeiro. No início primeiro 
semestre de 2004, os Estados Unidos intensificaram as pressões para que o Brasil 
aderisse a um específico Protocolo Adicional ao acordo de salvaguardas do TNP, 
dando aos inspetores da AIEA maior autoridade para fazer verificações intrusivas 
no seu programa nuclear. Esse Protocolo Adicional, que estava em negociação 
desde 1992, seria voluntário, mas a AIEA pretendeu fazê-lo impositivo e ir além 
da prática regular, que permitia a verificação de todos os aspectos do 
enriquecimento de urânio, salvo sua tecnologia. Exigia também que o Brasil 
suspendesse todos os programas de enriquecimento ou de reprocessamento, que já 
houvesse começado, e permitisse tantas inspeções quanto fossem arbitradas, não 
apenas nas instalações nucleares, mas em qualquer parte do território 
considerada suspeita — o que incluía residências particulares, se assim fosse 
decidido, respondendo a qualquer pergunta relacionada com a questão. De 
conformidade com a doutrina de George W. Bush, anunciada em 11 de fevereiro de 
2004, os países que até então não produziam urânio enriquecido não estariam 
autorizados a fazê-lo. Apenas o Brasil, entretanto, seria afetado e prejudicado 
com a adesão ao Protocolo Adicional, porquanto era, entre os signatários do TNP, 
o único país, com uma indústria nuclear capaz de produzir urânio enriquecido.
Esse problema evidenciou ainda mais o enorme erro cometido pelo governo de 
Fernando Henrique Cardoso, levando o Brasil a aceitar o TNP, ao qual a Índia, 
Paquistão e Israel não aderiram e as grandes potências, notadamente os Estados 
Unidos, estavam a violar, não cumprindo o programa de desarmamento e produzindo 
novas armas nucleares. Entretanto, a resistência do Brasil ante as inspeções 
intrusivas pretendidas pela AIEA deu origem a intrigas, através de alguns meios 
de comunicação, difundindo-se a suspeita de que ele estaria pretendendo também 
fabricar armamentos nucleares. The Washington Post publicou um artigo, no 
qual considerou que a atitude do Brasil, ao não permitir que os inspetores da 
AIEA examinassem as instalações nucleares em Resende, gerava receio de que.
"a new type of nuclear race is underway, marked not by the bold pursuit of 
atomic weapons but by the quiet and lawful development of sophisticated 
technology for nuclear energy production, which can be quickly converted into a 
weapons program". .
O articulista, Peter Slevin, assinalou que o projeto do Brasil criava também um 
dilema para o presidente George W. Bush, que passara a exigir restrições mais 
rigorosas sobre o enriquecimento de urânio, mesmo para produção de energia 
elétrica, como parte da nova estratégia de impedir a proliferação de armamentos 
nucleares. Por sua vez, La Nación, de Buenos Aires, comentou, em 
editorial que a "inesperada noticia" de que o Brasil não autorizaria os 
inspetores da AIEA a inspecionar a usina de enriquecimento de Urânio, havia 
gerado "compreensible inquietud". E ao assinalar a existência "temores 
en relación con las costosas centrífugas brasileñas", inclusive, segundo 
alguns círculos, o perigo de que essas centrífugas pudessem ter alguma conexão "con 
la actividad del doctor Abdul Qadeer Khan, a quien se imputa el haber vendido 
ilegalmente secretos científicos a Irán, Libia y -acaso- a Corea del Norte", 
formulou várias perguntas, nas quais transpareceu o intuito de gerar 
desconfiança e suspeita. .
"¿Conoce la Argentina el programa al que no tendrá acceso la Agencia 
Internacional de Energía Atómica? ¿Tienen las autoridades argentinas información 
suficiente sobre las centrífugas brasileñas, con las salvaguardias de 
confidencialidad que son necesarias?". .
Por trás dessa campanha contra a atitude do governo de Lula da Silva havia, 
certamente, tanto interesse econômico quanto, igualmente, político e 
militar-estratégico. O Brasil, com a sexta maior reserva mundial de urânio e 
tecnologia própria, comercialmente competitiva, demonstrou que podia alcançar a 
autonomia na produção do combustível nuclear, fonte de energia da maior 
importância, ante perspectiva de esgotamento das reservas mundiais de petróleo, 
ainda na primeira metade do século XXI, e não mais necessitava remeter o minério 
bruto para converter-se em gás no Canadá e, depois, seguir para a Europa, onde a 
Urenco o enriquecia e o devolvia em forma de gás para utilização nas usinas 
Angra I e Angra II. deixaria de ser exportador do minério e passaria a 
desempenhar importante papel como global player, no bilionário mercado de 
combustível nuclear, como virtual concorrente dos Estados Unidos. O comando da 
Marinha, responsável pelas ultra-centrífugas para enriquecimento de urânio, e as 
agências brasileiras do setor advertiram o governo de que por trás das pressões 
da AIEA, atrás das quais o Departamento de Estado se movia, poderia existir o 
objetivo de espionagem da tecnologia de ponta desenvolvida pelo Brasil e 
considerada superior à americana e à francesa. E o vice-almirante Othon L. P. da 
Silva, na reserva, apontou o motivo estratégico-militar que determinava as 
pressões desencadeadas pelos Estados Unidos. Esclareceu que os artefatos bélicos 
nucleares podiam ser classificados de duas formas: os de destruição em massa e 
os inibidores de concentração de forças. Armas de destruição em massa eram as de 
fusão (bombas de hidrogênio) e as de fissão de maior porte. As de baixa potência 
eram inibidoras, pois qualquer operação militar para invasão ou ocupação de um 
território implicava a prévia concentração de forças. A existência de artefatos 
nucleares de baixa potência no território-alvo, com um vetor adequado de 
lançamento, funcionaria como poderoso inibidor, e obviamente não agradavam aos 
"países que têm como opção política permanente a intervenção militar — 
independentemente da aprovação da ONU". A existência de uma usina de 
enriquecimento de urânio diminui o tempo entre a denúncia de todos os acordos e 
tratados já celebrados, e a eventual fabricação de artefatos, i. e., making 
nuclear weapon on short notice. Segundo o vice-almirante Othon L. P. da 
Silva, a intenção do presidente George W. Bush de reiniciar testes nucleares e 
desenvolver nova geração de pequenos artefatos com o objetivo de usá-los de 
forma "cirúrgica", até mesmo contra países não nucleares, era preocupante para o 
mundo. E tais atitudes somadas a agressões, sem o respaldo do Conselho de 
Segurança da ONU, como aconteceu com o Iraque, constituíam forte estímulo à 
proliferação nuclear, principalmente nos países islâmicos com os quais os havia 
potencial de confrontação. Diversos motivos tinha, portanto, o Brasil para não 
permitir o tipo de inspeções intrusivas que a AIEA estava a pretender. E a 
perspectiva era de que questão se reabrisse em 2005, durante a conferência de 
Exame do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, possibilitando que o 
Brasil denunciasse que as cinco potências nucleares (Estados Unidos, Rússia, 
Inglaterra, França e China) não estavam a cumprir o "compromisso inequívoco" 
quanto à eliminação total de seus arsenais atômicos. 
Outros acontecimentos, entrementes, concorreram para conturbar ainda mais as 
relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos, para o qual o problema 
principal constituía a política exterior. O chanceler, embaixador Celso Amorim 
obtive outra vitória com a decisão da OMC, na questão dos subsídios aos 
produtores de algodão, que causavam perdas comerciais ao Brasil da ordem de US$ 
480 milhões. Durante audiência na the House of Representatives Agriculture 
Committee, em 28 de abril de 2004, o USTR Robert Zoellick declarou que iria 
recorrer da decisão, mas diversos deputados reconheceram que os Estados Unidos 
teriam de desistir da ALCA, se o veredicto fosse mantido, ao fim da disputa. O 
deputado Robert Etheridge (Democrata, Carolina do Sul) advertiu que, se a 
decisão prevalecesse, seria "uma perda de tempo" levar a ALCA para a votação no 
Congresso. E, comentando a decisão em favor do Brasil, o deputado Bob
Goodlatte, presidente do Commmitee on Agriculture, ressaltou que ganhar 
acesso para os produtos agrícolas dos Estados Unidos era "the most 
important objective of the ongoing WTO negotiations" . 
Pouco tempo depois, em 9 de maio, The New York Times publicou um longo 
artigo, assinado pelo jornalista Larry Rohter, no qual atribuía ao presidente 
Lula da Silva o costume de beber, ressaltando, já no título, que esse costume se 
convertia em preocupação nacional. O artigo, muito vago e sem qualquer 
fundamento sério, leviano e infamante, afirmou que a "president's 
predilection for strong drink" estava a afetar a performance do seu governo. 
E ainda acentuou que historicamente os brasileiros tinham razão de ficar 
preocupados ante qualquer sinal de "heavy drinking by their presidents", 
pois Jânio Quadros, eleito em 1960, era um notório alcoólatra e renunciara ao 
cargo, depois de menos de um ano de sua investidura, dando origem a um período 
de instabilidade política que "led to a coup in 1964 and 20 years of a harsh 
military dictatorship". Esse artigo provocou a indignação do governo e a 
repulsa de todos os líderes políticos, até da oposição, bem como da própria 
imprensa brasileira, e o próprio presidente Lula da Silva determinou o 
cancelamento do visto de trabalho de Rohter, implicando a sua expulsão do 
Brasil, medida esta que recebeu várias críticas nos meios políticos, embora 
contasse com o apoio de grande maioria da população brasileira. 
Como Dora Kramer, colunista política do Jornal do Brasil, observou, 
Rohter fez "um relato a respeito de rumores que, nem de longe, figuram na lista 
das principais preocupações nacionais em relação ao governo Lula". E exatamente 
por isso, devido à sua falsidade, a publicação do artigo em The New York 
Times, menos de duas semanas após a vitória do Brasil na OMC, em conjugação 
com o artigo do Washington Post sobre a produção de urânio enriquecido 
nas instalações da INB, em Resende, e outros fatos, avigorou a conjectura de que 
estava em curso uma campanha para desacreditar Lula da Silva, mostrá-lo como 
incompetente, e criar uma situação de ingovernabilidade, de modo a permitir a 
adoção do parlamentarismo com um chefe de governo mais palatável para 
Washington. A comparação com Jânio Quadros, além de descabida, foi capciosa, ao 
insinuar que o Brasil podia caminhar para uma situação semelhante à criada, com 
sua renúncia à presidência da República, em 25 de agosto de 1961. Tudo indicou 
que os artigos publicados em The Washington Post, e por The New 
York Times, não foram casuais nem eram inocentes. O ministro de 
Planejamento, Guido Mantega, ressaltou que quando um diário, como The New 
York Times, passava a publicar esse tipo difamação, algo por detrás havia. "Si 
fuera un diario de la prensa amarilla, que viviera de esto, todo bien. Pero lo 
que vemos es que con el artículo trataron de desgastar la imagen del presidente 
Lula" . Na sua opinião, esse intento de desgaste era orquestrado 
por interesses norte-americanos, em virtude de que Lula da Silva havia alentado 
a formação do G-20 (grupo de 20 países em desenvolvimento), combatia os 
subsídios agrícolas concedidos pelos Estados Unidos e estava a dificultar 
criação da ALCA. Círculos militares e diplomáticos igualmente suspeitaram de que 
a CIA estava a desenvolver uma guerra psicológica (media), no estilo da
grey e black propaganda, empreendida usualmente pela CIA, e sua 
razão constituía a política exterior do Brasil, que contrariava os interesses 
dos Estados Unidos. 
Embora mantivesse a política de estabilização monetária, com mais rigor ainda do 
que Fernando Henrique Cardoso, e promovesse duas reformas estruturais 
(previdenciária e tributária), descontentando os segmentos mais radicais do PT e 
da esquerda, mas ganhando o respeito e a simpatia do empresariado e dos 
investidores estrangeiros, a política exterior do governo de Lula da Silva, ao 
defender, com firmeza, os interesses nacionais do Brasil, tanto em Cancun quanto 
em Port of Spain, entrou em rota de colisão com a diretrizes da política 
exterior de George W. Bush. Não foi sem razão, portanto, que a revista americana
Newsweek, na semana da reunião de Miami, circulou com o retrato de Lula 
da Silva na capa e o título: "The Two Faces of Lula: Wall Street Loves Him. 
Washington Loathes Him". .
St. Leon (Baden-Württemberg, Alemanha), maio de 2004..