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Latinoamérica

26 de marzo del 2003

A guerra nos convoca à desobediência civil

Rodrigo Gurgel.

A voracidade expansionista e imperialista dos Estados Unidos da América do Norte (EUA) não é, absolutamente, um fato novo. E justificar essa mesma voracidade, utilizando uma visão messiânica de si mesmo e de seu papel no mundo, parece ser um lugar-comum recorrente nas ideologias criadas e difundidas pelas oligarquias ianques do eixo Boston-Washington..
Na guerra desencadeada contra o México, entre 1846 e 1848, o discurso que justificou as atrocidades dos EUA foi baseado no "Destino Manifesto" ou "Destino Evidente", que até hoje parece influenciar as decisões políticas norte-americanas. A expressão, cunhada pelo jornalista John L. O'Sullivan, expressava a idéia de que os americanos tinham não apenas o direito de expandir seu território por todo o continente, mas, principalmente, a obrigação de fazê-lo, pois esta era a "vontade de Deus", o que os colocava numa posição superior àquela ocupada pelos demais povos. As fontes nas quais se inspira o atual governo republicano dos EUA são, portanto, muito evidentes..
O "Destino Manifesto" serviu não só como justificativa para a violência contra o México, mas também para legitimar, por meio de um discurso exageradamente etnocentrista, a dizimação das tribos indígenas que habitavam o oeste dos EUA..
Ao final da guerra, a intervenção norte-americana alcançou seu objetivo e praticamente metade do território mexicano foi anexado aos EUA. Para o México, a guerra representou, além das mortes de milhares de civis e militares, o início de um longo período de instabilidade política e econômica que acabou por levar o país a uma prolongada ditadura e, finalmente, a uma guerra civil..
É nos momentos de crise, contudo, que as melhores consciências parecem despertar. Semelhante ao que ocorre agora, quando o mundo se mobiliza contra a arrogância e a empáfia dos ianques, saindo às ruas, cercando embaixadas norte- americanas e proclamando sua discordância em relação à guerra, a violência contra o México produziu, dentre outras centenas de manifestações, um ensaio clássico, leitura imprescindível para estes dias em que a irracionalidade parece insistir em querer triunfar..
Escrito entre os muros de uma prisão, enquanto a guerra contra o México semeava o luto e a injustiça, A desobediência civil, de Henry David Thoreau é um resplandecente conjunto de páginas, cujo inigualável brilho guarda força suficiente para inspirar e impulsionar a sociedade civil contemporânea e as novas gerações em nossa luta para nos contrapormos às atrocidades cometidas pelos EUA e pelo capitalismo transnacional..
Para Thoreau, "quando (...) um país inteiro é injustamente invadido e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei militar, (...) não é demasiado cedo para os homens honestos se rebelarem e darem início a uma revolução"..
Cada parágrafo desse libelo atemporal é uma lúcida objeção às loucuras e aos crimes dos EUA. "O que é este governo americano senão uma tradição (...) que se empenha em passar inalterada à posteridade, mas que perde a cada instante algo de sua integridade?", questiona Thoreau, como se inquirisse o próprio Bush..
Nada escapa ao furor da pena desse escritor. Ele descreve o fuzileiro naval norte- americano como "uma mera sombra e reminiscência de humanidade, um homem amortalhado em vida, de pé, mas já sepultado em armas com acompanhamento fúnebre". E traça um insuperável retrato daqueles que, obedientes à vontade do Estado, apontam as armas para seus semelhantes como cegos fantoches: "A grande maioria dos homens serve ao estado desse modo, não como homens propriamente, mas como máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, os membros da força civil, etc. (...) Tais homens não merecem respeito maior que um espantalho ou um monte de lama. O valor que possuem é o mesmo dos cavalos e dos cães." .
É impossível não ler A desobediência civil sem estabelecer analogias com a guerra contra o Iraque. Elas brotam naturalmente da leitura, questionando a legitimidade dos governos que, imbuídos de uma assustadora megalomania, acreditam- se maiores do que seu próprio povo: "O governo em si, que é apenas a maneira escolhida pelo povo para executar sua vontade, está igualmente sujeito ao abuso e à perversão antes que o povo possa agir por meio dele. Basta pensar na atual guerra mexicana, obra de uns poucos indivíduos que usam o governo permanente como seu instrumento, pois, de início, o povo não teria consentido nesta medida." .
Quando milhões de pessoas, nos mais diferentes pontos da Terra, saem às ruas e expressam sua indignação e sua revolta em relação às decisões unilaterais e francamente sequiosas de poder e lucro dos EUA, é a indignação e a revolta de Thoreau que as impulsiona. O mesmo sentimento que inspirou Gandhi, um fervoroso leitor de A desobediência civil, em sua luta - vitoriosa - contra o imperialismo britânico..
Thoreau, esse genial e inclassificável norte-americano, nos propõe duas questões fundamentais à compreensão do nosso papel em sociedade: "Deve o cidadão, sequer por um momento, ou minimamente, renunciar à sua consciência em favor do legislador? Então por que todo homem tem uma consciência?" E, usando de uma didática ferina e absolutamente clara, ele mesmo nos responde: "Penso que devemos ser homens, em primeiro lugar, e depois súditos. Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer a qualquer tempo aquilo que considero direito." De fato, há momentos - como estes que estamos vivendo - nos quais toda sublevação traz, em seu germe, a sua própria legitimidade..
As palavras de Thoreau não perderam a força. Elas se dirigem - como sinais de esperança e coragem - aos milhões de pessoas que têm saído às ruas, mobilizadas para expressar seu protesto e sua repulsa à guerra contra o Iraque: "Uma minoria é impotente enquanto se conforma à maioria, nem chega a ser uma minoria então, mas torna-se irresistível quando se põe a obstruir com todo o seu peso." .
Quando os crimes se repetem, as idéias contidas em A desobediência civil parecem ressurgir, com uma luz renovada, na consciência daqueles que ousam lutar por um mundo onde a paz, a solidariedade e a igualdade entre os povos sejam direitos absolutamente inalienáveis. Elas revigoram nosso anseio por justiça e nos dão a certeza de que resistir é o melhor que podemos fazer por nós, pela liberdade, por todos os povos e, também, pelas futuras gerações..
* Editor e ensaísta. Sítio na internet:
www.rodrigo.gurgel.nom.br